De: Immanue Wallerstein
Publicado em: 1/2/2011
Tradução: Rafael para o Plano Brasil
Não é fácil se rebelar contra um regime autoritário. O regime tem armas e dinheiro à sua disposição, e normalmente ele pode simplesmente reprimir tentativas de desafiá-lo nas ruas. Atos simbólicos, como a autoimolação de Mohamed Bouazizi, um jovem mascate numa cidade remota da Tunísia, em protesto contra atos arbitrários de agentes do regime, pode inflamar outros a protestar, como ocorreu na Tunísia. Mas para esse ato levar à derrubada de um regime, é preciso haver fissuras nesse regime.
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Neste caso, claramente houve fissuras. Nem o exército nem a polícia estavam prontos para atirar nos revoltosos, deixando esse papel apenas para a guarda presidencial de elite. Isso não foi o bastante, e o presidente Zine el-Abidine Ben Ali e sua família tiveram de fugir, conseguindo achar refúgio apenas na Arábia Saudita. Que havia fissuras no regime mostra-se claramente no fato de que as figuras mais influentes do partido de Ben Ali, tentando sobreviver à tempestade, se certiricaram de prender Abdelwahab Abdallah, uma figura chave no aparelho de coerção de Ben Ali, antes que ele os prendesse. Lembrem-se como, depois da morte de Stalin, seus sucessores imediatamente prenderam Lavrenti Beria pela mesma razão.
.Claro, depois que Ben Ali fugiu, o mundo todo aplaudiu, com as únicas exceções de Kaddafi da Líbia e Berlusconi da Itália, que continuaram a defender as virtudes de Ben Ali. O principal defensor estrangeiro de Ben Ali, a França, sentiu-se suficientemente envergonhada como que para confessar seus “erros” de julgamento. Os Estados Unidos, tendo deixado a Tunísia aos cuidados supostamente seguros da França, não se sentiram na necessidade de se desculpar de forma parecida.
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Como todos notaram, o exemplo da Tunísia encorajou a “rua árabe” em outros lugares a seguir um caminho parecido – mais notavelmente, no momento, o Egito, Iêmen e a Jordânia. Enquanto escrevo, não se tem certeza se o presidente Hosni Mubarak do Egito será capaz de sobreviver.
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Agora, quem são os vencedores e os perdedores? Não saberemos até no mínimo seis meses, talvez mais tempo, quem de fato virá a tomar o poder na Tunísia, no Egito ou mesmo em todo o mundo árabe. Levantes espontâneos criaram situações como a da Rússia em 1917, quando, como na famosa frase de Lenin, “o poder está nas ruas”, e portanto uma força organizada e determinada pode tomá-lo, como os Bolcheviques o fizeram.
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Mas a situação real em cada estado árabe é diferente. Não há, hoje, um único estado árabe que tenha um partido fortemente organizado, secular e radical como os Bolcheviques, prontos para tentar tomar o poder. Há vários movimentos burgueses liberais que gostariam de ter um papel maior, mas poucos deles parece ter uma base de apoio importante. Os movimentos mais organizados são os islamistas. Mas estes movimentos não são de uma só cor. Suas versões de um estado islâmico variam de um estado relativamente tolerante para com outros grupos, tais como existem hoje na Turquia; a uma versão mais dura de Shária [lei religiosa do Alcorão], como a que o Talebã impôs no Afeganistão; até a variedades intermediárias tais como a Irmandade Muçulmana no Egito. No que concerne aos regimes internos, os resultados são indeterminados e cambiantes. E portanto quem vence internamente é extremamente incerto.
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Mas e quanto a potências estrangeiras, que estão fortemente envolvidas em tentar controlar a situação? O principal ator externo são os Estados Unidos. O segundo é o Irã. Todos os outros – a Turquia, a França, a Grã-Bretanha, a Rússia, a China – são menos importantes, mas ainda assim relevantes.
.O maior perdedor da segunda Revolta Árabe são os Estados Unidos. Pode-se ver isso pela incrível vacilação do governo dos Estados Unidos no presente momento. [Ao definir quem são seus maiores parceiros], os Estados Unidos (como toda outra grande potência no mundo) colocam um critério acima de todos os outros: quem é cooperante com ele. Washington quer estar do lado do vencedor, desde que o vencedor não lhe seja hostil. O que fazer numa situação como a do Egito, que no presente é um quase um estado cliente dos Estados Unidos? Os Estados Unidos estão reduzidos a pedir publicamente por mais “democracia”, não-violência e negociações. Por trás das cortinas, eles parecem ter dito ao exército egípcio que não envergonhem os Estados Unidos, atirando em muitas pessoas. Mas pode Mubarak sobreviver sem atirar em muitas pessoas?
.A segunda Revolta Árabe está ocorrendo no meio de uma situação mundial caótica em que três características predominam: uma queda na qualidade de vida de pelo menos dois terços da população; aumentos revoltantes nas rendas de um estrato social relativamente pequeno de ricos; e um sério declínio no poder efetivo da dita “superpotência”, os Estados Unidos. A segunda Revolta Árabe, seja lá como termine, vai erodir mais ainda o poder dos Estados Unidos, especialmente no mundo árabe, precisamente porque, hoje, a única base segura de popularidade política nestes países é a oposição à intrusão dos Estados Unidos em seus affairs internos. Mesmo aqueles que normalmente querem e dependem do envolvimento dos Estados Unidos estão achando politicamente perigoso continuar assim.
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O maior vencedor estrangeiro é o Irã. O regime iraniano é, sem dúvida, visto com suspeita considerável [pelos árabes], em parte porque ele é um país não-árabe e xiita. Foi, no entanto, a política americana que deu ao Irã seu maior presente: a retirada de Saddam Hussein do poder. Saddam tinha sido o inimigo mais firme e eficiente do Irã. Os líderes iranianos provavelmente recitam uma bênção por dia a George W. Bush por essa maravilhosa prenda. Eles construíram, a partir desse presente, uma política inteligente pela qual eles têm se mostrado prontos a apoiar movimentos não-xiitas como o Hamas, desde que eles se oponham fortemente a Israel e à intrusão americana na região.
Um vencedor de menor porte é a Turquia. A Turquia foi por muito tempo uma maldição para as forças populares do mundo árabe pela dupla razão de que ela era a herdeira do Império Otomano e porque ela era intimamente aliada aos Estados Unidos. O atual regime popularmente eleito – um movimento islamista que não busca impor a lei de Shária em toda a população, mas simplesmente droit de cité para observância islâmica – tem se movido no sentido de apoiar a segunda Revolta Árabe, mesmo com o risco de comprometer suas relações, antes boas, com Israel e os Estados Unidos.
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E, é claro, o maior vencedor da segunda Revolta Árabe serão, com o tempo, os povos árabes.
Nota do editor.
Muito obrigado Rafael pela gentileza esforço e colaboração.
E.M.Pinto
Fonte: Iwallerstein
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