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Por que a União Europeia não anexará a Ucrânia?

Por Pepe Escobar. Traduzido pelo  Coletivo de tradutores Vila Vudu
Artigo originalmente publicado sobre o título Why the EU won’t annex Ukraine


European Council president Herman Van Rompuy (R) exchanges documents with Ukrainian Prime Minister Arseniy Yatsenyuk during the signing of the political provisions of the Association Agreement with Ukraine at the EU headquarters in Brussels on March 21, 2014 on the second day of a two-day European Council summit. (AFP Photo)

A nova Ucrânia de “Yats”, Tyahnybok e Yarosh assinou, na maior correria, os itens políticos de um acordo de associação com a União Europeia (EU) em reunião em Bruxelas, na 6ª-feira passada.


Nada menos de 30 burocratas (nomeados, não eleitos) da UE também assinaram o documento, entre os quais o presidente do Conselho Europeu Herman Van Rompuy e o presidente da Comissão Europeia (CE) Jose Manuel Barroso.
É o mesmo negócio que o ex-presidente Viktor Yanukovich decidira rejeitar em novembro passado – rejeição que, na sequência, levou aos protestos na praça Maidan, a um putsch apoiado pelos EUA apesar de recheado de atores fascistas e neonazistas, o que levou Moscou a assumir o controle da Crimeia sem disparar um tiro.

Assim, em teoria, é o negócio que deu início a tudo. Essa não-entidade sem cara, ao estilo de Magritte, que atende pelo nome Van Rompuy, disse que “reconhece as aspirações do povo da Ucrânia, que quer viver em país governado por valores, por democracia e sob o império da lei.”

Muita calma nessa hora. Contenham os cavalos (mongóis). Como mostra a história, “democracia” e “império da lei” nada têm a ver com o governo dos mudadores-de-regime, do Setor Direita ou do Partido Svoboda em Kiev.

Yanukovich rejeitou o negócio com a UE por duas razões essenciais: (1) o negócio destruiria a indústria ucraniana (abrindo a porta à invasão por produtos ocidentais e o saque dos ricos solos agricultáveis da Ucrânia, pelo agronegócio ocidental); e (2) o negócio forçaria a Ucrânia a obedecer aos protocolos militares da OTAN.

O que foi assinado na 6ª-feira não é o xis da questão; é só uma integração comercial (leia-se: “Agora, podem saquear a Ucrânia”). A UE deixou a parte essencial para depois. Antes, o FMI terá de polir os detalhes mais mortíferos de próximo “ajuste estrutural”. Mas o Conselho Europeu já está prometendo[1] um jardim de rosas.
Trata-se, sempre, da OTAN
‘Especialistas’ acadêmicos e midiáticos em surto histérico repetem, 24 horas por dia, sete dias por semana, que, amanhã cedo, a Ucrânia já estará integrada à União Europeia (já praticamente em bancarrota). Nada disso. O negócio final não passará de um acordo de associação; depois, ainda haverá estrada longa e sinuosa até o país ser admitido na UE (admissão que, por falar dela, a maioria absoluta dos estados-membros da UE não querem).

O artigo 7.2. do acordo de associação determina que a Ucrânia terá de submeter-se à política externa e de segurança comum (PESC) [orig. common foreign and security policy (CFSP)] e à política europeia de segurança e defesa (PESD) [orig. European security and defense policy (ESPD). As condições podem ser lidas nos próprios documentos.[2]

Essa obscura – inclusive para muitos europeus – PESD é, nada mais nada menos, que o pilar europeu chave da OTAN. Tradução: ali se detalha o modo como a União Europeia é e permanece subordinada aos EUA (que controlam a OTAN). Por exemplo: a UE só pode agir em algum determinado caso DEPOIS de a OTAN decidir não agir. Além disso, o acordo de março de 2003 +Berlim[3] permite que a União Europeia use maquinário e softwares da  OTAN para operações militares, se e somente se a OTAN declinar de usá-los.

Tudo isso significa, essencialmente, isso sim, que a Ucrânia já está com o pé na estrada na direção de ser legalmente subordinada ao projeto da OTAN. Como outros analistas independentes, também tenho escrito, desde o início, que todo esse drama geopolítico visa, em primeiro lugar e sobretudo, à anexação da Ucrânia pela OTAN, não por alguma União Europeia.

O pervertido caso de amor entre OTAN e Ucrânia começou no início dos anos 2000s. Depois de muito discutir-a-relação, ficou resolvido que OTAN-sim ou OTAN-não seria algum dia votado em referendo nacional. No encontro de Bucarest em 2008, a OTAN abriu os braços: declarou que a Ucrânia poderia vir e unir-se, no instante em que cumprisse as exigências. Em 2010 Yanukovich anunciou que a Ucrânia mudara de ideia, que perdera o interesse. Mesmo assim, a Ucrânia foi mantida como membro muito forte de uma Parceria para a Paz [orig. Partnership for Peace (PfP)], iniciativa da OTAN.[4]

Não surpreende que a OTAN esteja agora fazendo horas-extras no serviço de vender ao mundo a noção de que a Ucrânia está(ria) “sob ameaça” – e que deve unir-se “à aliança” o mais rapidamente possível. O secretário-geral da OTAN – aquele espantosamente medíocre poodle dos EUA, Anders Fogh Rasmussen – disse que estaríamos vivendo hoje a mais grave ameaça à segurança da Europa desde o fim da Guerra Fria: “Esse é o toque de despertar. Para a comunidade euro-atlântica. Para a OTAN. E para todos que se sintam comprometidos com uma Europa una, livre e em paz.”

Esqueceu de acrescentar: uma Europa livre e pacificamente submetida ao Pentágono.

O principal comandante militar da OTAN – não surpreendentemente, é norte-americano –, o general Philip Breedlove, anda espalhando por aí a ‘notícia’ de que a Rússia teria reunido força militar “muito, muito, muito considerável e muito, muito, muito pronta” nas fronteiras leste da Ucrânia. Moscou nega e repete que todos esses soldados lá estão conforme os exatos termos de acordos internacionais.[5]

Alguém, é claro terá de ceder. O ministro de Defesa da Rússia, general Sergey Shoigu conversou pelo telefone com Chuck Hagel, el supremo do Pentágono. Estão discutindo uma “desescalada das tensões”. Mas parece que burocratas e políticos da União Europeia e empregados da OTAN não foram informados.
Agora... será a vez da Transdnístria?[6] 
A conversa da imprensa-empresa ocidental e dos ‘especialistas’ midiáticos na UE é que o incansavelmente demonizado presidente Putin deseja(ria) “desestabilizar” a Ucrânia e criar uma esfera de influência russa no sul e leste da Ucrânia até Odessa. Claro. Oh yes. E quer também anexar a Transdnístria.

Nada disso. De fato, foi o presidente do parlamento da Transdnístria, Mikahil Burla, quem pediu que Moscou incorporasse à Federação Russa a região de língua russa, no oeste da Moldávia. Afinal de contas, já em 2006, 97,2% dos que votaram em referendo então realizado declararam exatamente o mesmo desejo. Qual é o problema?

O problema é que a Moldávia – exatamente como aconteceu à Ucrânia – está às vésperas de assinar um acordo de associação e livre comércio com a União Europeia. E a Transdnístria (como, há poucos dias, a Criméia) não quer ser incluída no tal acordo.

Falta agora ver como a UE – essencialmente mediante o FMI – conseguirá ‘salvar’ a monstruosamente falida economia ucraniana. Um acordo de associação só tornará as coisas ainda piores e mais sombrias para os ucranianos médios. Venha o dinheiro que vier para Kiev, virá necessariamente condicionado a fatídicas cláusulas de ‘austeridade’.

Moscou não precisa “anexar” ou “invadir” coisa alguma. Moscou só precisa recostar-se à poltrona, relaxar e assistir aos movimentos do ocidente que tenta gerir a confusão monstro que o próprio ocidente criou. Exceto a retórica metida a feroz da OTAN e o papel assinado em Bruxelas na 6ª-feira, que não é importante, há poucos sinais de que os EUA (perdidos eles mesmos na confusão de tantos ‘pivôs’ que inventaram, para lá e para cá) e uma depauperada União Europeia terão capacidade, habilidade e disposição para cumprir o difícil trabalho de apoiar sem interrupção o governo dos mudadores-de-regime em Kiev.

Todos esses 15 anos que transcorreram depois que a OTAN bombardeou[7] a ex-Iugoslávia – levaram a surto serial de mudação de regimes; à balcanização do país; e a um “grande prêmio” (Kosovo convertido em Mafialândia; e a principal instalação imobiliária do país, “Camp Bondsteel”, item chave do Império Norte-americano de Bases). Agora, Rasmussen quer na Ucrânia um replayda OTAN na Iugoslávia?! Só imbecis entram correndo onde até os anjos temem tropeçar. A Rússia não é o Kosovo.



 Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia TodayThe Real News Network Televison Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo.
Livros:
− Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009.

Notas
[6] “Transdnístria”, “região além do rio Dniester” (mais em http://pt.wikipedia.org/wiki/Transn%C3%ADstria) [Nts].

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